LXXXIX

Todo rio deságua no mar.
Lava roupa,
leva luz,
lava pés,
leva cor,
afogados e dor.

E o céu ali, impassível.
À tarde nunca nega espetáculo ao fogo,
à noite salpica seu curso com estrelas e,
ao amanhecer, já cuidou de orvalhar o chão e o ar,
já fez suas vezes de o verde molhar.

Enquanto isso,
a terra mansa e redonda, corteja os dois.
O céu sabe, o rio também.
O mar? Ah! Esse faz de conta que só quer bem.
Pensa que é grande demais
pra pobre terra ninguém.
Só porque reflete o céu.
É o seu caráter de espelho narciso.

Todo rio deságua o mar.
Traz o cheiro, o peixe.
Lava a alma, batiza, acalma.
Penetra a terra,
molha a semeadura.
Ela goza o jorro,
devolve em trigo e sorgo,
delira com tamanha doçura.

E o céu ali.
Assíduo espectador,
companheiro fiel,
testemunha desse amor.